Artigo nº 005 - chamamento à participação cidadã

Como se contrapor a uma elite golpista


26/04/16 - Visto agora à distância, pode-se dizer que o povo brasileiro foi deveras incoerente nas eleições de 2014. Ao mesmo tempo que elegeu Dilma Rousseff (PT), de centro-esquerda, para a presidência da República, presenteou a si mesmo e a própria presidenta com um verdadeiro cavalo de Tróia: o Congresso Nacional majoritariamente direitista e imoral. Formado por 513 deputados federais e por 81 senadores, este congresso é sem sombras de dúvida, o pior dos últimos decênios.

Desde que foram abertos os trabalhos em 1º de janeiro de 2015, o dito Congresso tem dificultado ao máximo a presidência da República de governar, além de impor ao governo uma pauta extremamente conservadora e neoliberal - sob a regência da mídia. Agora mesmo, Eduardo Cunha (presidente da Câmara), PMDB-RJ, está novamente a chantagear o Senado (será que seria necessário?). Enquanto o Senado não aprovar o impeachment-golpista contra Dilma, nenhuma questão de interesse do Senado passará na Câmara, ameaça o deputado-réu.

Para se livrar da ditadura militar e a ditadura militar se livrar de ser derrubada por uma revolução popular, as elites promoveram a tal ‘abertura política’ no início dos anos oitentas. O movimento Diretas Já (1984), que levou milhões de brasileiros às ruas, terminou golpeado pelo congresso em eleição indireta, levando a chapa Tancredo-Sarney à vitória. Com a morte de Tancredo, o vice Sarney (um dos acionistas da Globo) assume o cargo mor da República.

José Sarney propõe o que seria a tônica daí em diante: um pacto social a partir de uma transição (rumo a uma democracia que deveria se manter sob o controle de uma elite apátrida). Nasce à fórceps a nossa democracia e a Nova República. Longo e doloroso parto: teve de passar por uma dupla-anistia (que anistiou oposicionistas, mas também torturadores), por hiperinflação, Plano Cruzado (que gerou a greve geral de 12 de dezembro de 1986, a maior da história do pais), a elaboração da Constituição Cidadã de 1988 e as eleições de 1989, que levou ao poder o primeiro presidente eleito da Nova República: Fernando Collor de Melo (PRN-AL).

E outro golpe aconteceu: em sua posse no dia 15 de março de 1990, a ministra da Fazenda do novo governo, Zélia Cardoso de Melo, anuncia o famigerado Plano Collor, que de cara confiscou as cadernetas de poupança e outros 'serviços' de milhões de brasileiros. Iniciava-se assim o primeiro governo neoliberal no Brasil, que buscou atacar o Estado e caçar os marajás (cortando despesas via arrocho salarial e atacando o funcionalismo público), além de vender estatais à preço de banana para pagar o déficit público. Assim, um imenso mal-estar foi sentido com a recém-chegada democracia no Brasil. Se para os trabalhadores foi um alívio (livramo-nos da ditadura), para as elites foi uma boa cartada: deram ao povo algumas liberdades políticas em troca da intensificação do arrocho econômico e mais sangria internacional. Veio o impeachment (renúncia) de Collor, o governo tampão de Itamar, o Plano Real e os 8 anos de governo FHC (depois de comprar a reeleição com o mensalão I).

Pois bem. Este pacto social das elites (que incluiu representações da classe trabalhadora) fabricou um monstrengo: a conciliação nacional. Quase todos os partidos de esquerda se institucionalizaram e jogaram praticamente todas as fichas no processo eleitoral e na democracia burguesa (congelando ou desacelerando o trabalho de base). E foram necessários alguns anos até que um partido mais popular vencesse as eleições presidenciais: em 2002 inicia-se o governo de Lula. Enfim, a esperança venceu o medo, dizia-se à época. E venceu de novo (Lula 2006), de novo (Dilma 2010) e de novo (Dilma 2014). Em nome da conciliação de classes, a cada governo, o PT foi se aliando mais à direita, distribuindo ministérios, secretarias e cargos aos partidos 'amigos' e cedendo mais e mais espaço à agenda neoliberal. A direita tradicional foi ganhando espaço, engordou, foi saindo fora da aliança e, agora, 2016, está a dar o decisivo bote (golpe branco). Tudo na maior suavidade possível. Um golpe lento, gradual e irrestrito à moda brasiguaia. Parlamentar-jurídica como no Paraguai, mas não como lá em 48h, mas em câmera lenta, torturando a democracia, o voto popular e a presidenta eleita.

Mas, vejamos alguns dados, extraídos de https://www2.camara.leg.br/deputados/liderancas-e-bancadas/bancadas/bancada-na-eleicao/bancada-na-eleicao.

Em relação aos partidos, quantos eram e quantos são? Em 1998 haviam 18 partidos representados na Câmara dos deputados. Em 2002, 19. Em 2006, 21. Em 2010, 22. E em 2014, 28 partidos.

Quais eram as maiores bancadas? Em 1998: a maior bancada era a do PFL (o futuro DEM), com 105 deputados. O PT era a quinta força, com 59 deputados. Em 2002, a maior bancada passa a ser a do PT, com 91 deputados, seguida pela do PFL com 84, PMDB com 75 e PSDB com 70. Em 2006, a primeira bancada é a do PMDB com 89 deputados, seguida pela do PT com 83, PSDB com 66 e PFL com 65. Em 2010, a maior bancada eleita é a do PT, com 86, seguida pela bancada do PMDB com 78, PSDB com 54 e PP com 44. Em 2014, a atual, temos o PT com 68, seguida pela bancada do PMDB com 66, PSDB com 54 e PP com 38.

Assim, a bancada de centro-esquerda eleita em 2014 compunha-se de: PT (83), PDT (19), PCdoB (10), PSOL (5), totalizando 102 deputados (fora os avulsos em cada partido dito nanico).
No fatídico dia 17 de abril de 2016, na votação sobre o impeachment de Dilma na Câmara, o placar ficou em 367 deputados a favor do golpe contra 137 contrários ao golpe, mais 7 abstenções e 2 ausências. Como se vê, o resultado era bem previsível e bem coerente com o tamanho das bancadas. Daí, num pragmatismo antiético, não se considerar o mérito da questão (se Dilma cometeu ou não um crime de responsabilidade), mas a vontade política dos partidos direitistas em surrupiar o poder a todo custo.

Um trabalho recente, datado de fevereiro de 2016, e publicado no site  https://apublica.org/ mostra a câmara dos deputados com mais profundidade e níveis de detalhes. É que, desde que o poder da grana passou a eleger ou cooptar deputados, os partidos já não representam grande coisa. Existe uma força maior no Congresso: chama-se lobbies.

Os lobbies compram deputados que se aglutinam por bancadas, podendo um deputado pertencer a mais de uma bancada ou lobby. Assim, dos 513 deputados da câmara, 238 são da bancada dos parentes (filhos, netos, esposas etc.). Dos 513 deputados, 226 pertencem a bancada das empreiteiras e construtoras; 208 são da bancada empresarial; 207 da bancada do agronegócio; 196 da bancada evangélica; 43 da bancada sindical; 35 da bancada da bala; 24 da bancada dos direitos humanos; 23 da bancada da mineração; 21 da bancada da saúde; e 14 da bancada da bola.

Na pesquisa é possível perceber que algumas bancadas são bem íntimas. É impossível não se ater ao fato de os 196 deputados da bancada evangélica também comporem as bancadas ditas patronais: agronegócio (84), parentes (83), empresarial (77), empreiteiras e construtoras (76). Curiosamente, nenhum membro da bancada evangélica pertence a bancada dos direitos humanos.

A bancada evangélica é um escárnio: é composta pelo Pastor Marcos Feliciano, Jair e Eduardo Bolsonaro, Eduardo Cunha, entre outros. Quase todos os votos desta bancada foram dados em favor do golpe, que se esconde sob a alegação de ‘impeachment’.

Aliás, em artigo intitulado 'Boi, Bala e Bíblia contra Dilma', a Agência Pública mostra o voto golpista por bancada: ''Em ordem decrescente, votaram pelo impeachment as bancadas da bala (88,24%), empresarial (85,32%), evangélica (83,85%), ruralista (82,93%), da mineração (79,12%) e dos parentes (74,49%), formada por deputados com familiares na política. Nesses grupos, o porcentual de apoio ao impedimento foi superior ao valor registrado na votação de domingo, que resultou em 71,54% das manifestações pelo impeachment se considerados todos os deputados, com 367 votos - o que fez com que o processo seguisse para o Senado Federal. A bancada da bola ficou bem próxima desse patamar, uma vez que 71,43% dos seus integrantes votaram 'sim'.''

O desacordo nas eleições de 2014 entre o voto majoritário (Dilma - centro-esquerda) e o voto proporcional (direitista) se explica obviamente pela força da grana (compra direta e indiscriminada de votos de eleitores) e pelas inúmeras, flexíveis e cruzadas coligações, mas também pela força da ideologia. E aí entra em cena o papel das igrejas evangélicas fundamentalistas, que promovem o voto religioso de cabresto (cabra-cordeiro) mas também dos meios de comunicação de massa. A ‘grande mídia’ tem conseguido impor um modo de pensar empresarial (burguês, capitalista), interesseiro e pragmático-utilitarista. Quantos programas ou trechos de programas de TV, rádio, revistas e sites são voltados para o fomento do empreendedorismo, aliados ou não às ONG's? Vejamos alguns destes programas manipuladores que fazem a cabeça de grande parte do povo (jovens e adultos, mas também crianças e idosos): ‘Pequenas empresas, grandes negócios’ (TV Globo), ‘mundo S/A’ (Globo News), ‘O que dá certo’ (Band News), ‘Giro Business’ (Band News), ‘Mundo Corporativo: Empreendedorismo e inovação’ com Milton Jung (CBN – Sistema Globo de Rádio), ‘Finanças pessoais’ com Mara Luquet (Jornal da Globo), ‘Revista Elas & Lucros: Finanças pessoais para mulheres’ (UOL), ‘Grandes Empreendedores’ (TVB-Record), ‘Programa Brasil Empreendedor’ (TV Record), ‘Nação 318’ (TV Record) etc.

O espírito competitivo, o darwinismo social (expresso na luta egoísta pela existência), o analfabetismo político coxinha, a ideologia da diferença (que tem alimentado o ódio dos conservadores) e o vale tudo antiético estão sendo estimulados diuturnamente pela mídia corporativa: ‘BBB’ (TV Globo), ‘The Voice Brasil’ (TV Globo), ‘BBQ Brasil: O primeiro reality show de churrasco do país’ (SBT), ‘UFC combate’ (TV Globo), ‘A Fazenda’ (TV Record), ‘MasterChef’ e ‘MasterChef Jr.’ (BandTV) e muitos mais. Sem falar nas séries americanas enlatadas que entopem a TV a cabo, a lembrar que um outro mundo PIOR é possível: o mundo da escravidão e/ou das trevas medievais, um mundo desregulamentado, onde a lei é a dos mais fortes - verdadeira barbárie.

Mas ainda há quem cobre e culpe o povo brasileiro por não votar direito. Daria pra ser diferente? Estaria aí, na batalha das ideias e nas coligações conciliadoras (é bom lembrar que Dilma subiu no palenque dos candidatos da Igreja Universal, do PMDB e de tantos outros inimigos do povo), a explicação para a incoerência entre o voto à candidata majoritária (centro-esquerda) e o voto dado aos candidatos proporcionais (direitista).

Como se vê, é urgente a democratização dos meios de comunicação no Brasil. O PT, há 13 anos no governo, agora reconhece, nas palavras de Lula, que perdeu a chance de seguir a orientação de Leonel Brizola, que cansou de dizer que em seu primeiro dia de governo poria abaixo o monopólio da Rede Globo. É que não é possível governar ileso com a intromissão sistemática e imoral do Quarto Poder.

Por certo a política é o lugar de pensar a cidade (o país e o mundo que se globaliza), de agir pelo bem público, de resolver os tantos problemas que nos são comuns. Mas, o interesse privado vem comendo o prato da política pela beirada faz tempo. É fácil culpar o eleitor, acusando-o de não saber votar. Mas quem tem levado o povo a colocar seus interesses particulares à frente dos interesses coletivos? Quem o tem levado ao pensamento fútil e despolitizado, egoísta? Quem tem se proposto a discutir com este mesmo povo?

Mas segue o pensamento conservador: já que o povo não sabe votar, há que tirar esse direito de boa parte dele. É a ideia elitista do fim da obrigatoriedade do voto – o que nos aproxima dos tempos da Velha República (década de 20 do século passado), onde se praticava o voto de cabresto, onde o analfabeto, a mulher e o adolescente não podiam exercer esse direito hoje universal.

O país precisa urgentemente de uma reforma política que impeça o financiamento privado e empresarial de campanha, que revalorize os partidos a partir da definição clara de seus programas (com discussão programática junto ao eleitorado), proibição da prática de lobby dentro do Congresso (antes que vire uma profissão-corrupção regulamentada como nos Estados Unidos), volta dos comícios em praças públicas, fidelidade partidária (um deputado que abandonar a legenda perde o mandato, entrando o suplente do partido, o que evitaria o troca-troca de partidos e o casuísmo), e que seja restabelecido o voto vinculado a fim de garantir a governabilidade do majoritário eleito (presidente da República, governadores e prefeitos) e coibir a farra das coligações. Tudo isso recuperaria a crença e a credibilidade do povo para com a política, a fim de criar em nosso país uma democracia participativa que recupere o gosto popular pela política. Ainda há tempo! Mas, que fique bem claro: este será um embate direto das forças populares e progressistas contra o poder da grana, que prefere as coisas como estão, ou seja, a política como balcão de negócio e de golpe e não a política como deve ser: prática de solidariedade em prol do bem comum e da justiça social.

Renato Fialho Jr.