Artigo nº 014 - teórico

A Escravidão e a so(m)bra do tempo

'Eu não sou planta que se arranca
e que se põe em qualquer lugar'.

(Sérgio Ricardo - músico, compositor e cineasta brasileiro. In: 'Palmares')

12/01/14 - Uma enxurrada de fatos nos afoga cotidianamente. Ouvimos notícias e não dispomos de tempo para uma análise mais criteriosa. E é preciso lembrar que a ciência (como o seu símbolo: a coruja) precisa da observação paciente e meticulosa antes de levantar voo.  Mas, é de uma maneira muito pouco criteriosa que normalmente levamos a vida e, desta forma, o conhecimento, um direito humano, vai sendo perigosamente usurpado de nossa condição cotidiana.

E isto se dá por que a maioria já não detém mais de tempo suficiente para o estudo, o lazer e o sono. A Revolução Francesa prometera 8h de trabalho, 8h de lazer e 8h de descanso. Mas a dinâmica do próprio desenvolvimento capitalista, que objetiva o lucro, para intensificar-se em sua lógica privatizadora, ainda mais em tempo de crise, não para de espremer e sacrificar os tempos de liberdade individual e de dignidade humana.

A lógica capitalista, a cada dia, parece nos aproximar mais e mais da condição de escravos sem que sequer nos apercebamos disso. Não é por acaso que a mídia monopólica não perde tempo em gritar, a cada instante, o caráter 'democrático' da sociedade burguesa e do mundo ocidental cristão! Para que nos 'sintamos' felizes! Sentir! Não que sentir não seja importante! Sentir é um dos fundamentos da ciência e do existir humano. Mas os sentidos, que nos ajudam a obter informações do mundo real são a princípio aparências, e como se diz, as aparências (muitas vezes) enganam. Mas vejam: segundo Platão, em 'o mito da caverna', o mundo da aparência é o mundo dos escravos, dos acorrentados. Porque para ele o mundo do sensível é o mundo das sombras (dos sentidos e das aparências enganosas). Fora da caverna, estaria o mundo solar: da luz e da razão (alma). Platão via assim o mundo dividido. A TV, aliás, pode ser vista como uma versão atualizada do mito platônico: luz produzida fora da caverna (pela emissora, que pretende ser a nossa alma racional), e que chega sombria em nossas casas (nossas cavernas), projetadas sobre a tela da TV (o fundo da caverna platônica) enquanto estamos "acorrentados" junto ao sofá. E para não haver dúvida disso, logo escutamos a confirmação: "Globo: A gente se liga em você!".

Mas, em relação à escravidão, sem dúvida, é a condição mais infame a que pode chegar um ser social: trata-se da condição de coisa, de objeto. É ter vida e não ter domínio sobre ela, pois que seu tempo de vida é planejado, condicionado e determinado pelo possuidor (o proprietário de escravo) de tal 'peça' (o escravo). Um escravo não tem vontade própria, não pode pensar ou falar ou escrever por si mesmo. Um escravo deve ser educado para servir, e ponto. Não deve reclamar de nada e além do mais deve se acostumar ao castigo. O bom escravo deve ser condicionado, ou indiferente, à dor e à morte, não deve ter ideias próprias e deve imaginar-se vitorioso como o seu amo, malgrado viva em meio a permanente derrota, e deixar-se convencer de que é tal e qual um animal: um burro, um boi ou uma vaca (um corpo sem alma). Como o escravo não se pertence, seu pensamento não possui autonomia e deve ser tal e qual o pensamento de seu senhor (é como se o escravo, por não ter alma, só corpo, precisasse de uma para dirigi-lo).

Como dizia há pouco, o capital está a nos extrair o tempo que antes dedicávamos a nós mesmos (estudo, lazer e descanso) em prol do tempo dedicado ao trabalho (tempo ao qual o capitalista se dedica a extrair a mais valia da força de trabalho que alugou em troca de um, habitualmente, mísero salário). Assim, uma parte do valioso tempo de viver do escravo é sacrificada a cada instante: pelas ordens proferidas sucessivamente antes mesmo de havermos terminado a tarefa a que já havíamos sido designado; no caminho ao trabalho ou de volta à casa, onde engarrafamentos monstruosos ou em trens atrasados e lotados completam a rotina extenuante. O próprio metrô é um buraco a mais por onde se esvai tempo-espaço: numa espécie de buraco-negro a nos absorver.

No caso do Brasil, devido aos eventos esportivos que se avizinham (copa do mundo 2014 e Olimpíada 2016), isso vai se tornando ainda mais claro. As obras espalhadas por toda a cidade tumultuam, extenuam e estressam a já tão difícil rotina de ida para o trabalho e de volta para casa. E até mesmo os proprietários de veículos automotivos, que costumam se gabar das vantagens do livre mercado, vão se transformando em prisioneiros (quem diria) do trânsito, trancafiados em suas modernas 'gaiolas de ouro' (falo daqueles carros de luxo, 4x4, com ar-condicionado, air-bag, DVD, som 3D, bar à bordo e outras pratas) cada dia mais potentes e velozes e o motorista e seus caronas aleijados pela falta de (auto)mobilidade.

O 'multitarefismo' oriundo desses tempos de concepção neoliberal, pós-moderna e toyotista, nos sufoca. O 'desejo' de se sentir incluído no mercado ofertante, nos leva a adquirir novos trabalhos, a fazer 'bicos' e a nos endividar: caminho mais rápido para a colonização de nosso corpo e alma pelo capital. O fanatismo pelo 'empreender' termina por nos 'prender em' uma série de outras coisas. E, no final das contas, terminamos por ficar muito longe do que verdadeiramente significa 'viver bem'.

E quanto tempo falta até que sejamos capazes de reaver não o tempo perdido, pois que este se perdeu, mas que o tempo perdido nos sirva como aprendizado. Talvez haja chegado a hora de pensarmos em métodos de burlar o sistema que nos rouba o tempo. Que tal retomarmos os estudos com afinco? Se o neoliberalismo ama a ciência enquanto inovação e lucro, que tal valorizarmos a ciência como realizadora da necessidade social humana (ligada portanto à verdade e à justiça, estas co-irmãs)? Que tal criarmos uma associação mais solidária e justa entre trabalhadores? Que tal buscarmos compreender a realidade tal como ela é (por mais dura e cruel que ela seja) e abandonarmos a imaginação mitológica que só nos cega? Que tal agirmos na solução de problemas concretos? Que tal combatermos o egoísmo presente na concepção e prática burguesa do empreendedorismo? Que tal exigirmos dos governos soluções para os transportes baseadas na viabilização dos transportes de massa? Que tal nos recusarmos às práticas que nos tornam escravos?

Em 'Manifesto do Partido Comunista', Marx e Engels prognosticaram a sociedade comunista proletária nestes termos: 'Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes, surge uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos'.

E isto não só é possível, como extremamente necessário num mundo onde o ser humano tornou-se espécie ameaçada de extinção!

Renato Fialho Jr.